o último dia
[foto-poema]
A pálida luz banha a escada naquela tarde inerte, como se não quisesse deixar nenhum brilho.Mas as sombras projetam-se impiedosas como lanças que apontam para a dor daquele momento.Sobe devagar cada degrau, o cão a acompanhar cabisbaixo.

Jazem sobre o móvel gasto sem mais nenhum sentido.Enfileiradas, como a proteger a si mesmas... São ainda fortes!Cinco mil anos não se perdem assim.

A família que nunca existiu parece mais forte do que jamais havia sido.Afinal, com o vínculo desfeito, cada um pode finalmente... ser.

Com passos inevitáveis penetra fundo nas entranhas claustrofóbicas da vida que nunca havia sido.A morte sim, ali fazia sentido.

As marcas parecem quadros vivos: as imagens enfim podem existir.

Palimpsestos em meio a profundas rachaduras, feridas cruas de dores infindas.

No chacra da outrora vida, repousa agora a urna do corpo último,
com a luz a lhe perscrutar a alma ausente.

O jornal como única companhia, afinal sempre fora assim, mesmo em vida.

Ossos moídos pontiagudos em meio às cinzas inofensivas, mortas.Os restos a espelhar a vida que é tanta morte agora.

O cão que sabe que nunca mais haverá depois, assiste triste. Chora, só ele.

No último gesto, uma gota de afeto.Pensa que era mesmo ali que o pai gostaria de ficar a morte inteira.

Apressado, sai espalhando a morte que insiste em não terminar.Fecha o portão. O cão atrás, saltando para a vida que começa agora.
